sexta-feira, 6 de novembro de 2009

A Lenda do Rio Guaíba

Num passado muito distante quando não havia cidades grandes, automóveis, televisão e nem internet, uma grande seca castigou a terra dos índios Arachanes. Os rios secaram e os peixes morreram. A caça não era mais encontrada com tanta facilidade. Os Arachanes entraram em pânico com aquela situação calamitosa.

Por isso, guerreiros se reuniram e foram falar com o pajé e conselheiro Amberê. O pajé lhes disse que deveriam realizar um ritual tribal para pedir a ajuda de Cesy, a mãe natureza. Na primeira lua cheia acenderiam o fogo sagrado e em volta dele dançariam e cantariam em louvor à mãe até entrar em sintonia com a bondosa Senhora. Mas alertou:

- A mãe só nos dirá o que fazer se todos demonstrarmos que realmente nos preocupamos uns com os outros!
E, assim foi feito... O pajé conhecedor dos rituais mágicos preparou a fogueira sagrada.A celebração começou. Desta vez homens, mulheres e crianças dançaram e cantaram juntos em volta da fogueira.

Dançaram sem parar durante horas, quando de repente... As chamas da fogueira aumentaram... E uma voz doce e serena chegou aos ouvidos de toda tribo.

- Meus amados filhos da tribo dos Arachanes, o que está por vir é muito grave! O clima vai piorar ainda mais... Vocês provaram ser unidos e que tem amor uns pelos outros. Eu posso sentir isto nesta noite mágica. Por isso, num sonho mostrarei ao Pajé Amberê, onde podeis encontrar um lago. Em volta deste lago vocês poderão sobreviver durante estes dias difíceis. Mas, isto só será possível se seguirem as regras que ensinarei ao pajé...
Após ouvirem estas palavras as chamas voltaram ao normal e todos em silêncio foram para suas ocas. Com os primeiros raios de sol na manhã seguinte a tribo se reuniu em frente oca do pajé. Amberê foi até eles e disse::

Nossa mãe cumpriu com a palavra! Mostrou-me o caminho do lago. Também, ensinou as coisas que devemos fazer para que todos sobrevivam quando chegarmos lá. A água do lago pertence a todos, deve ser usada para matar a sede, cozinhar, tomar banho e também para o cultivo de alimentos para todos. Todos devem cuidar e morar longe das margens do lago, nunca jogar lixo ou restos de animais nas águas do lago. Na estação da caça, nunca abater fêmeas prenhas ou com filhotes, caçando apenas o suficiente para satisfazer a fome da tribo. Pescar somente nas estações mais frias, quando faltam alimentos para os homens e os animais. Se cortarem uma árvore para fazer uma oca; plantem outra. Ela estará pronta para construir um abrigo para seus filhos quando ele crescerem.

Depois de ouvirem o pajé Amberê, cada membro da tribo foi até sua oca pegar seus pertences para partir em busca do lago.

Foi uma jornada penosa. Às vezes faltavam forças para dar um único passo à frente. Então, Amberê relembrava as palavras da mãe natureza. Isto encorajava todos a seguir adiante. Passaram por regiões muito devastadas pela seca. Lugares onde antigamente corriam rios, agora davam lugar a uma terra seca e rachada.

Por todos os lados carcaças de animais mortos e aldeias abandonadas. Todos se perguntavam sobre onde teria ido parar toda aquela gente. Quando a desesperança se abateu sobre todos, alguns guerreiros começaram a duvidar das palavras da mãe natureza e questionar os conhecimentos do pajé. Foi então, que chegaram num vale gigantesco e no meio do vale avistaram o lago.

No vale, além do lago haviam pequenos arbustos desbotados e retorcidos espalhados por todas as direções. Seguindo as orientações do pajé, os Arachanes construíram suas ocas bem longe do lago.

A vida era difícil, mas a tribo não passava fome. Pequenos frutos colhidos nos arbustos eram repartidos entre todos. Sempre tinham cuidado de deixar alguns frutos nos arbustos para alimentar os animais que apareciam no vale. Os alimentos cultivados nas hortas eram consumidos nos dias em que não encontravam frutos ou animais para abater.

As chuvas voltaram aos poucos , fazendo o lago aumentar de tamanho. O verde se espalhou pelo vale e animais selvagens já podiam ser vistos com freqüência. Os ensinamentos da mãe natureza eram seguidos e respeitados por toda tribo.

A roda do tempo girou e os pequenos arbustos deram lugar a uma floresta de árvores altas. O lago alimentado pelas chuvas cresceu a ponto de ficar bem próximo da aldeia. Então, Amberê reuniu a tribo e disse:

– Irmãos da Tribo dos Arachanes! Nós teremos que levar nossas ocas para longe das margens do lago. Por que assim nos ensinou a mãe...

O guerreiro Cauré um filho rebelde protestou. Falou que não havia necessidade de mudar para longe por que o Lago era grande o suficiente para todos morarem em sua volta. Também, disse que os tempos eram de fartura e que Amberê estava muito velho para comandar a vida da tribo dos Arachanes. Pior, não acreditava mais em Cesy, mãe natureza.

Cauré não se mudou e sua atitude o foi copiada por toda tribo. Pajé Amberê ficou desolado com a tribo. Sabia que havia uma razão para que todos seguissem os ensinamentos da mãe natureza. Magoado, juntou as poucas coisas que possuía e foi morar numa serra próxima ao vale.

Sem a presença de Amberê para orientar a vida da tribo, os ensinamentos da mãe natureza foram logo esquecidos. As ocas se multiplicaram à beira do lago. As hortas comunitárias foram abandonadas e o mato tomou conta.

Nas caçadas, os guerreiros abatiam mais animais do que necessitavam para matar a fome da família. O resultado eram muitas sobras, ossos e carcaças que pela proximidade eram impiedosamente jogados no lago.

Para fazer ocas de maior conforto, a tribo derrubou as árvores crescidas nos últimos anos.

As ocas maiores ocuparam praticamente toda orla do Lago. Espantando os animais que se abrigavam nas árvores ou que iam até ao lago beber água.

A maioria destes animais terminou por abandonar o vale e foi procurar outro lugar, mais tranqüilo, para morar.

Além de restos de animais, os Arachanes adquiriram o péssimo habito de jogar no lago todo o tipo de objetos que não lhes tinha mais serventia. O lixo e os animais mortos jogados nas águas poluíram toda a orla, causando a morte de milhares de peixes. A água contaminada provocou doenças, feridas pelos corpos. As crianças foram as que mais sofriam. A peste e a fome mais uma vez ameaçou a tribo.
Sem alternativas só restava procurar o pajé e para pedir ajuda. Levaram vários dias até que encontraram o pajé. Ele estava morando em uma caverna no alto de uma montanha. Após ouvir as queixas da tribo, o pajé desabafou:

- Irmãos, nossa mãe nos guiou até este lago. Além disso, ela devolveu a esperança na vida quando restava apenas aguardar pela morte. Ouviu nosso pedido de socorro e ensinou como superar as dificuldades. Mas, vocês desprezaram estes ensinamentos. Vejam a tragédia que aconteceu: os peixes morreram, os animais sumiram e a floresta foi devastada.
Continuou...

- Aqui do alto acompanhei com muita tristeza o desatino de todos e a destruição do vale pelas próprias mãos dos Arachanes. Procurem os índios mais velhos da tribo. Eles dirão como foi que chegamos a este vale. Desta vez não poderei ajudá-los. Lembrem-se, para conseguir falar com nossa mãe terão que agir de forma corajosa, despretensiosa e persistente.

De volta à aldeia, os índios mais novos da tribo souberam do ritual que os antigos haviam feito para entrar em sintonia com a mãe, das regras ensinadas por ela e da difícil jornada até encontrar o Lago.

Diante do caos em que se encontravam trataram de preparar mais uma vez o antigo ritual tribal.

Na primeira noite dançaram e cantaram até não agüentar mais. Porém, nada aconteceu. Quando o sol preparava-se para nascer no horizonte, o guerreiro Urissanê, tomou coragem e em frente todos, assumiu sua culpa por ter se afastado dos ensinamentos da Mãe Natureza. Seu gesto foi repetido por todos os guerreiros mais velhos. A tribo se dispersou silenciosamente após todos prometerem que na noite seguinte tentariam novamente entrar em sintonia com Cesy.

Também, na segunda noite, a mãe natureza não se manifestou. Alguns já pensaram em se entregar à morte, quando o guerreiro Arani disse: - Irmãos, não percam as esperanças. Enquanto pudermos ficar em pé, teremos que continuar. Devemos isto aos nossos filhos. Eles não podem ser prejudicados pelas atitudes erradas que nós tomamos.

Na terceira noite ficou acertado que só participariam da dança os mais velhos. Os jovens guardariam suas energias para partir em busca de um novo local para morar.

A dança começou bem cedo. Por volta da meia noite os vigorosos passos foram trocados por um arrastar de pés. Mas, ninguém desistia. Quando alguém caía no chão, o guerreiro Cauré estendia sua mão, levantava o irmão e a dança mística continuava.

Um por um os guerreiros foram tombando. Até que sobrou em pé apenas Cauré. Ele continuou cantando e dançando sozinho até que as forças lhe faltaram. Então, caiu de joelhos e ao bater no chão exclamou:


- Sei que não somos merecedores, mas... Perdão, ó minha mãe!

Neste exato momento, fachos de luz saíram da fogueira e iluminaram a aldeia. As chamas aumentaram e a voz da Mãe Natureza foi ouvida por toda Tribo:

- Meus queridos, os erros de um filho sempre trazem dor ao coração de uma mãe. Mas, ela sempre está pronta para perdoar este filho quando sente que ele realmente está arrependido do mal que praticou.

Os guerreiros caídos aos poucos começaram a se levantar e os mais novos deixaram as ocas para se aproximar da fogueira. Mãe natureza continuou:

- Apesar do sofrimento que vocês estão enfrentando, para mim hoje é uma noite de alegria. Pois, não há felicidade maior para uma mãe do que ver que um filho que seguiu pela trilha do mal, reencontrou novamente o caminho do bem. Por isso seus esforços serão recompensados. Podeis ir tranqüilamente para as suas ocas... Amanhã vocês terão uma grande surpresa!

Todos seguiram as ordens da mãe e lentamente dirigiram-se para as ocas.

No outro dia ao sair das ocas a tribo quase não acreditou no que viu. O lago havia se transformado num imenso rio de águas correntes. Concluíram, que era um presente da mãe natureza para a tribo dos Arachanes e deram ao rio o nome de Guaíba.


Na beira do rio avistaram o Pajé, que estava a admirar aquele belo cenário. Cheios de alegria a tribo cercou o pajé. O Pajé Amberê aproveitou a oportunidade e falou:

- Meus Irmãos, eu espero que vocês nunca mais esqueçam o que acontrceu aqui. Lembrem-se, de sempre proteger a água do rio dos Arachanes. Pois água é o nosso maior tesouro. Sem água a floresta não cresce e os animais desaparecem. O guerreiro mais valente perde suas forças e vai ao chão como se fosse golpeado por um inimigo invisível. Preservar a água, é também preservar a vida.
O pajé falou que seu tempo na terra dos Arachanes estava por terminar. Iria embora com felicidade no seu coração, pois seu povo havia recuperado juízo. Alertou que todos viveriam felizes para o resto de suas vidas se continuassem seguindo os ensinamentos da Mãe Natureza.

Assim que parou de falar, o Pajé Amberê abriu caminho na multidão e partiu rumo às montanhas que cercavam o vale e nunca mais foi visto.

FIM



GLOSSÁRIO
Amberê: tupi-guarani, sf. relâmpago.
Arachanes: Pertencem a grande família dos índios Guaranis, apontados como os moradores mais antigos das margens do rio Guaíba. Foram dizimados com a chegada dos imigrantes açorianos em 1714, mais pelas doenças dos brancos (gripes etc..), do que por conflitos. Também conhecidos por índios “Arachas ou Arachanes que eram ótimos nadadores o nome “Aracha – Arachanes” significa PATOS por isso o nome Lagoa dos Patos (Lagoa dos Arachas).
Arani: tupi-guarani, sf. Tempo furioso.
Cauré: tupi-guarani, sf. Espécie de Gavião.
Cesy: tupi-guarani, sf. Mãe Superior.
Guaíba: tupi-guarani, sf. lugar onde o rio se alarga ( gua (grande) + y (água, rio) + ba (lugar) ).
Tupã: tupi-gurani, sf. Deus.
Urissanê: tupi-guarani, sf. Vagalume, pirilampo .

INDIOS ARACHANES

Os índios Arachanes pertencem à família dos Índios Guaranis. Habitavam de Norte a Sul e pelo centro do atual Rio Grande do Sul, entre a Serra Geral e a Lagoa dos Patos. Alguns estudiosos estimam que esta ocupação tenha se dado por volta de 6.500 anos A.C.. Os Arachanes praticavam a agricultura e eram conhecidos por ser uma tribo organizada e pacífica.

Foram eles que deram ao rio dos porto-alegrenses o nome de “Guaíba”, que significa na língua Guarani, lugar onde o rio se alarga (gua (grande) + y (água, rio) + ba (lugar) ).

Quando os primeiros exploradores espanhóis e portugueses, no século XVI, vieram a conhecer a terra dos Arachanes, a região onde atualmente se encontra a cidade de Porto Alegre, encontraram na localidade os índios Arachanes.

Através desta tribo os colonizadores ficaram sabendo que o rio largo que corria naquelas belas paragens se chamava Guaíba.

Mais de 300 anos se passaram e as coisas mudaram radicalmente no território dos Arachanes. Os arachanes desapareceram da face da terra, mas o nome do rio não.

Ultimamente, alguns intelectuais encasquetaram em chamar este rio de lago. Mas, o povo continua dizendo que as águas que banham a cidade de Porto Alegre são as águas do “Rio Guaíba”. Não há como duvidar deste fato. O povo tem sabedoria. Afinal, a voz do povo é a voz de Tupã.

3 comentários:

Unknown disse...

Poderia informar a fonte desse texto ou dessa história, por favor?

Leonel Braz - O Famoso Quem(?) disse...

É uma livre criação do autor, que que utilzou elementos daba cultura Guarani. Os Arachanes é uma das dezenas tribos oriundas da etnia Guarani. Era a tribo que habitou as cercanias porto-alegrenses antes da colonização europeia. Desapareceram misteriosamente na região da Lagoa dos Patos, para onde se digrigiram com a chegada dos colonos. Arache significa pato. Os Arachanes eram excelentes nadadores. A maioria das ilustrações são do autor e três são de Willis Carmo.

Leonel Braz - O Famoso Quem(?) disse...

A lenda também forte conteúdo ecológico. A auto sustentabilidade foi e é traço marcante da cultura Guarani.

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